(Institutas IV. xv. 19)
O capítulo das Institutas intitulado O Batismo totaliza quase vinte páginas, sem considerar outro tanto acerca do batismo infantil. Contudo, Calvino usa apenas pouco mais da metade de um parágrafo para tratar do modo de batismo cristão. Diz ele: “... Quer a pessoa que está sendo batizada seja totalmente imersa, e que seja uma só vez ou três, ou se ela é apenas aspergida com água, isso é de bem pouca importância; antes as igrejas devem ter a liberdade de adotar um ou outro modo, em conformidade com a diversidade climática, ainda que seja evidente que o termo batizar significa imergir, e que esta forma foi observada na Igreja primitiva”.[1]
A flexibilidade de Calvino acerca do modo de batismo é surpreendente. Diante do exposto acima, consideremos quatro questões principais:
1) A quantidade de água no batismo é realmente importante?
Segundo Calvino, “... Quer a pessoa que está sendo batizada seja totalmente imersa, e que seja uma só vez ou três, ou se ela é apenas aspergida com água, isso é de bem pouca importância...”. A Confissão de Fé de Westminster segue a mesma linha de Calvino: “Não é necessário imergir o candidato na água, mas o batismo é corretamente administrado derramando ou aspergindo água sobre a pessoa”.[2] Esse posicionamento é o mesmo em todas as igrejas que defendem a forma de batismo por aspersão. Evidentemente, o elemento que não pode faltar no batismo, em hipótese alguma, é a água. Calvino critica severamente aqueles que consideram de pouca importância batizar com água, conforme a instituição de Cristo, profanando a verdadeira consagração da água no batismo.[3]
A quantidade de água no batismo, de fato, não é relevante. O essencial no símbolo do batismo é o que ele representa. “Batismo é um sacramento no qual o lavar com água em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo significa e sela a nossa união com Cristo, a participação das bênçãos do pacto da graça, e a promessa de pertencermos ao Senhor”.[4] Hodge, comentando a definição de batismo do Breve Catecismo de Westminster, diz que “o mandamento de batizar é simplesmente um mandamento de lavar com água. Não é especificamente um mandamento de imergir, derramar ou aspergir”.[5] Essas declarações expressam fielmente o pensamento de Calvino acerca do batismo cristão, isto é, a forma como alguém é batizado com água “é de bem pouca importância”.
2) As igrejas são realmente livres para escolher entre um e outro modo de batismo?
De acordo com Calvino, sim. Ele entende que “... as igrejas devem ter a liberdade de adotar um ou outro modo, em conformidade com a diversidade climática[6]...”. Tanto os imersionistas quanto os aspersionistas não estão totalmente à vontade com essa declaração porque, segundo ambos, o modo de batismo envolve questões exegético-teológicas, como veremos no item de número três. Contudo, a declaração de Calvino é tranquila e equilibrada, longe da afetação dos debates da atualidade. Em geral os imersionistas não aceitam em sua membresia quem foi batizado por aspersão, a menos que seja batizado novamente por imersão, ou, segundo eles, seja verdadeiramente batizado, uma vez que o batismo por aspersão não é reconhecido pelos imersionistas. Os aspersionistas, via de regra, não rebatizam. Entendem que o batismo é um só e aquele que foi batizado por imersão numa igreja reconhecidamente evangélica está verdadeiramente batizado. Não por causa da quantidade de água aplicada, mas por aquilo que o batismo representa e significa.[7]
Subentende-se na declaração de Calvino (de que as igrejas são livres para escolher entre um ou outro modo de batismo) que se uma mesma igreja quiser diversificar o modo de batismo não tem problema algum. Entretanto, uma igreja batista, por exemplo, sempre irá batizar por imersão; uma igreja presbiteriana, por sua vez, sempre batizará por aspersão.[8] A igreja menonita é mais flexível, pois deixa a critério do candidato o modo de batismo que ele preferir.[9]
3) “Batizar” significa sempre “imergir”?
Calvino declara que as igrejas devem ter a liberdade de adotar um ou outro modo de batismo, “ainda que seja evidente que o termo batizar significa imergir...”. Penso que muitos calvinistas estarão surpresos com o que Calvino diz aqui. A afirmação de Calvino reflete a flexibilidade do pensamento dele sobre o modo de batismo cristão. Calvino está correto quando diz que o termo batizar significa imergir? Está sim. Contudo, “imergir” é apenas um dos significados do verbo “batizar”. O próprio Calvino não afirma em lugar algum que “imergir” é o único sentido do verbo “batizar”. Na época de Calvino, o modo de batismo não fazia parte das disputas teológicas. As discussões surgiram posteriormente por causa da insistência dos imersionistas em afirmar que batismo equivale à imersão, e somente imersão. O verbo “batizar” significa “imergir”, mas também: “lavar”, “banhar-se”, “purificar mediante lavagem”, e nem sempre no sentido literal de imergir.[10]
Não há um único caso nas Escrituras no qual se diga, explicitamente, de que maneira foi administrado o batismo.[11] Berkhof observa que “Jesus não prescreveu um modo certo de batismo, e a Bíblia nunca dá ênfase a qualquer modo específico”.[12] Hodge comenta que se a imersão fosse indispensável, por que não se empregou a palavra grega katadyo para expressar tal ordenança? E se os autores bíblicos quisessem falar de aspersão exclusiva, por que não usaram os termos raíno ou rantízo? Simplesmente porque o modo é nada, e a ideia é tudo, foi escolhida uma palavra que incluísse todos os modos nos quais a água pudesse ser aplicada como meio de purificação. Essa palavra é baptízo, para a qual não há substituto legítimo. Por isso, a palavra baptízo foi retida por todas as igrejas da cristandade.[13]
4) O batismo por imersão era, de fato, uma prática da Igreja primitiva?
Calvino diz que a forma de batismo por imersão “foi observada na Igreja primitiva”. Alguns aspersionistas tentam contornar essa afirmação, dizendo que não é bem assim; que Calvino se baseia numa fonte não confiável; que ele foi influenciado pela Didakê, etc. Nada disso! Calvino era um estudioso por excelência e, portanto, um profundo conhecedor da história da Igreja. Todavia, ele não afirma em absoluto que a imersão era a única forma de batismo na Igreja primitiva. Muito menos estabelece que as igrejas pós-primitiva devam fazer da imersão uma regra. Já vimos o quanto Calvino é flexível em se tratando do modo de batismo. O que a História relata é que tanto a imersão, quanto a aspersão ou efusão, acompanharam a Igreja cristã desde os tempos da Igreja primitiva.
Que o batismo por imersão não foi a única forma observada na Igreja primitiva, percebe-se através de gravuras encontradas nas catacumbas de Roma. Muitos cristãos foram enterrados ali durante as perseguições nos três primeiros séculos. Das escavações datam duas obras do século I. Numa delas João Batista está em terra seca derramando água sobre a cabeça de Jesus. Em outra pintura, João está no rio Jordão, imergido somente até os tornozelos, derramando água sobre a cabeça de Cristo.
Na Palestina de hoje é possível comprar uma pequena pedra com a gravura do batismo de Jesus. Não se acha uma só figura na Terra Santa que retrate o batismo de Jesus por imersão. Na Igreja de São Paulo, em Valleta, capital da ilha de Malta, há uma estátua de Paulo e Públio em tamanho natural. Paulo está batizando Públio, derramando água sobre a cabeça dele.
A que conclusão chegamos neste ensaio? A conclusão lógica e natural deste ensaio é que, para João Calvino, o modo de batismo é o que menos importa no batismo.
NOTAS E FONTES:
[1] João Calvino, As Institutas (Edição clássica). Vol. 4. 2ª ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006, p. 307.
[2] A Confissão de Fé de Westminster, XXIII, iii.
[3] Institutas, IV, xv, 19.
[4] O Breve Catecismo de Westminster, Resposta 94.
[5] Charles Hodge, Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 1410.
[6] “Diversidade climática”. A primeira versão em português (CEP, 1985) traz “diversidade das regiões” e a edição da Editora UNESP (2007), “diversidade dos países”.
[7] Calvino não admitia um novo batismo nem mesmo para quem vinha da Igreja Católica Romana. Entendia que o batismo feito em nome do Pai, Filho e Espírito Santo é válido, independente de quem o ministrou (Cf. Institutas, IV, xv, 16).
[8] A diversidade climática já não influencia tanto nos dias de hoje.
[9] Conforme entrevista que fiz ao pastor de uma importante igreja menonita do Brasil no final da década de 1980.
[10] Para um estudo detalhado acerca dos significados do verbo batizar e seus correlatos na Bíblia, consulte Charles Hodge, op. cit., p. 1410-1418; De la Insígnia Cristiana. 2ª ed. Países Bajos: Felire, 1987, p. 5-38; James W. Dale, Christic Baptism and Patristic Baptism: an inquiry into the meaning of the word as determined by the usage of the the Holy Scriptures and patristic writings. Phillipsburg: P & R, 1995, p. 471-622.
[11] Cf. Louis Berkhof, Teologia Sistemática. 7ª ed. Grand Rapids: T.E.L.L., 1987, p. 751.
[12] Louis Berkhof, Manual de Doutrina Cristã. Campinas/Patrocínio: LPC/Ceibel, 1985, p. 284.
[13] Hodge, op. cit., p. 1417.
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